10 mar 2022
Coleção Noite dos MuseusPor Bruna Paulin e Gustavo Foster
Infelizmente as cortinas estão fechadas nos teatros e não há previsão para o toque dos terceiros sinais voltar a silenciar a plateia. Enquanto isso, os atores, diretores, produtores e técnicos, profissionais que provavelmente serão dos últimos a retomar o trabalho em ambiente tradicional, encontram desafios e novos prazeres no fazer artístico em tempos de pandemia.
Com as salas fechadas, muitos buscaram o ambiente virtual para exibir projetos registrados em vídeo como uma maneira de manterem-se conectados com o público. Porém, o formato vem se desgastando ao longo dos meses, e o que começa a surgir agora são novos trabalhos, pensados já para o ambiente virtual. Mesmo desafiadas por questões técnicas e pela dificuldade da ausência de interação física com o público, as produções online têm crescido numericamente, apresentando uma nova perspectiva para quem produz – além de estabelecerem uma conexão com novos públicos que não eram impactados com o teatro de maneira presencial.
Segundo Katia Latufe, diretora de negócios da Sympla, empresa de venda de ingressos e gestão de eventos na internet, atualmente são em torno de 3 mil eventos online de entretenimento – entre teatro, shows e festas – disponíveis na plataforma. Somente de teatro, estão “em cartaz” ou já cumpriram temporada quase mil espetáculos.
– Antes da pandemia tínhamos uma média de 1,5 mil eventos nesse formato. Hoje, já totalizam mais de 9 mil. Apenas no setor de teatro há mais de 260 apresentações sendo vendidas no site e que acontecerão de forma online, muitas delas pelo Sympla Streaming. Sabemos já de muitas outras que estão em processo de ensaios e construção de novos espetáculos. É uma nova linguagem para todos e estamos aprendendo. Mas é unânime de que esse novo formato cultural veio para ficar.
Para a companhia Os Satyros, de São Paulo, a pandemia prejudicou as comemorações de aniversário de 20 anos e impediu uma turnê marcada na Europa. Mas não foi barreira para que o grupo continuasse trabalhando: mesmo em isolamento, o ator Ivam Cabral continuou as apresentações do monólogo Todos os Sonhos do Mundo, em cartaz aos domingos, às 20h, e segundas-feiras, às 21h, que já estava em turnê por cidades brasileiras, e estreou A Arte de Encarar o Medo (sextas e sábados, às 21h, e domingos, às 16h), peça que é inspirada na realidade imposta pela pandemia e conta a história de um grupo de amigos há mais de 5 mil dias em isolamento. Se o espaço físico que o grupo mantém na Praça Roosevelt, na capital paulista, comporta 70 pessoas, as iniciativas digitais do grupo têm alcançado público na casa das 300 pessoas – plateia que não se restringe à cidade onde a companhia foi criada, mas chega a outros estados e mesmo países. O acesso a novos espectadores levou o grupo a firmar uma parceria com 10 companhias da Europa e da África, o que gerou uma versão em inglês de A Arte de Encarar o Medo, também já em cartaz.
– Eu estava viajando com um solo meu, Todos os Sonhos do Mundo. Eu saí de Cuiabá, fui para Foz do Iguaçu e a pandemia estourou. Voltei para São Paulo e tivemos que também fechar o teatro, porque já se avizinhava o isolamento. O que aconteceu foi que a gente se recusou a parar. Dia 20 de março estreei o Todos os Sonhos em live no Instagram. Foi surpreendente o que aconteceu, porque, além de ter recebido um público muito bacana, fomos procurados pela Sympla, que nos convidou para levar a peça para lá. Achamos meio absurdo no início, mas assim que nos aproximamos, surgiu a ideia de migrar a peça para lá e também pensar em um conteúdo especialmente pela internet. No começo de abril, já começamos a ensaiar pro Zoom. A gente descobriu um novo lugar para poder trabalhar o teatro, a música, as artes em geral. Não acho que essa ideia seja exatamente nova, porque o teatro sempre caminhou junto com a sociedade. O teatro nasce de manifestações na rua, ganha um espaço depois, mas continua na rua, vai pras igrejas, palácios, hospitais, escolas. O teatro foi atingindo todos os lugares que ele podia atingir, então era inevitável que a gente chegasse à internet – conta Cabral.
Adaptação do palco para o ambiente virtual, na esperança de retornar ao presencial
Lançado em maio deste ano, o projeto #emcasacomsesc, promovido pelo Sesc SP, conta com sessões de espetáculos já conhecidos do público em versão adaptada para exibição pelo canal do YouTube da instituição, às segundas, quartas, sextas e domingos, às 21h30min. Diversos nomes do teatro brasileiro apresentam diretamente de suas casas textos clássicos e contemporâneos, em monólogos especialmente adaptados para o meio digital.
Em junho, a equipe do espetáculo Cérebro|Coração, dirigido por Enrique Diaz e Renato Linhares, interpretado por Mariana Lima e produzido pela Quintal Produções, teve o desafio de transformar o projeto para a exibição online.
– Recebemos o convite do Sesc SP e tivemos em torno de três semanas para adequar a encenação às especificidades de um contexto técnico até então inédito para todos nós. Foi preciso entender as contingências de espaço, tempo, equipe, mas também a adaptação dramatúrgica, as ações e escolhas estéticas. Enquanto produção tivemos todo o cuidado de respaldar a equipe de criação (Mariana, Enrique e Renato), como também nossa técnica de projeção, para que eles se sentissem respaldados em termos de estrutura e equipamentos. Foi uma oportunidade muito instigante – revelam Valencia Losada e Verônica Prates, produtoras da montagem.
Segundo a dupla, os maiores desafios estiveram em preservar a qualidade da experiência, “tanto para quem faz, sobretudo por quem assiste, mesmo quando sabemos que há uma distinção bastante significativa entre presença e comparecimento”. Sim – Cérebro|Coração em Conferência para Terra teve 1,5 mil espectadores em sua primeira exibição. Um pouco mais de um mês depois da estreia, já alcançou mais de 7,9 mil visualizações e segue disponível gratuitamente no canal do Sesc.
Valencia e Verônica acreditam que esse novo nicho segurá após a reabertura dos teatros. Porém, não acreditam que existirá uma substituição, e sim a possibilidade de mais uma opção de produção e veiculação das obras.
– Há fortes motivações para que se mantenham essas plataformas como uma alternativa cultural, o que não é ruim. Agora, se você nos perguntar se esse recurso ameaça substituir o presencial, diremos que não.
A Quintal, também responsável pela produção dos espetáculos Uma Flor de Dama e BR-TRANS, ambos estrelados por Silvero Pereira, recém havia estreado uma temporada da Peça do Casamento no Teatro Poeira, no Rio de Janeiro. A montagem, dirigida por Guilherme Weber e com Antonio Gonzalez e Eliane Giardini no elenco, segue com o cenário montado no palco do Poeira, aguardando o retorno das atividades. Apenas uma sessão do espetáculo ocorreu antes do decreto de fechamento das casas.
– Nós fizemos uma sessão online de Uma Flor de Dama recentemente e em breve teremos apresentações do BR-TRANS, mas a gente gosta mesmo é de estar dentro do teatro. Estamos ansiosas esperando o retorno – explicam Valencia e Verônica.
Transposição de espetáculo com 10 atores no palco para monólogo diante da câmera
A atriz Denise Fraga também integrou a programação do #emcasacomsesc, onde fez a transposição do espetáculo Galileu Galilei, sucesso de público que esteve em cartaz por mais de dois anos circulando pelo Brasil. A montagem contava com elenco com 10 atores, em que Denise interpretava o físico, astrônomo, filósofo florentino, através do texto de Bertolt Brecht.
– Recebi o convite do Sesc, que veio ao encontro com o desejo que já tinha em fazer um projeto chamado Galileu e Eu – A Arte da Dúvida, uma oportunidade de falar textos da peça que me moviam, trechos que me falavam ao coração. Me reuni com o Zé Maria, produtor e parceiro de longa data, e fizemos uma seleção. Fizemos uma costura e eu escrevi os “entremeios”. O texto, sempre tão atual, agora faz mais sentido ainda. Dilacerante e ao mesmo tempo traz esperança – diz Denise.
Inicialmente resistente às exibições e adaptações do teatro para o ambiente virtual, a atriz foi mudando de opinião ao longo do processo, que durou em torno de 20 dias:
– Eu tinha muita resistência a esse teatro virtual, ao interpretar para a câmera. Mas comecei a achar muito interessante as coisas que podem surgir nesses 80 centímetros de quadro, que a gente não pode se afastar demais, pois a maioria das pessoas assiste através de pequenas telas, dos celulares. Comecei a experimentar, achar esse lugar dentro desse metro, a significação de mãos, olhares, ficar muito próxima da câmera, se afastar, pequenos objetos que podiam entrar em quadro. E tudo isso começou a fazer parte da narrativa. Foi muito bom estar de novo com eles, Brecht e Galileu. Brecht escolheu contar essa história por identificação, ele também sempre teve questões com estruturas de poder que enfrentou. Para mim, pessoalmente, foi salvador. Foi muito bom poder dizer tudo isso neste momento.
Para Denise, o maior desafio foi a falta de presença física do público.
– Por mais que tenha sido muito legal a pesquisa e experimentação, tem uma solidão. Você tem que ter uma fé danada de que eles estão ali, e os seus motivos, seus estímulos, precisam ser mais intensos do que nunca. Você precisa crer que tem gente te vendo do outro lado da tela. Não tem nem equipe do lado. É você sozinha e uma lente. Às vezes parece uma coisa meio absurda, meio ridícula. Será que eles ainda estão me ouvindo? Será que ainda estão aqui?
Questões técnicas de transmissão também são um aspecto negativo para a atriz:
– A transmissão é outro estresse, pois o sinal pode cair. Agora há pouco fizemos de novo o Galileu, para o Cultura em Casa, projeto da Secretaria Estadual de Cultura de SP. A transmissão foi caótica, fizemos no 4G do telefone do Luiz (Villaça, diretor e marido de Denise). Esse desafio da transmissão é algo que pode interferir. Mas, se a gente pensar em imprevistos, no teatro presencial isso também pode acontecer: pode faltar luz, ter uma goteira na plateia, alguém passar mal, enfim.
Apesar da segurança da possibilidade de gravar a performance, Denise prefere fazer ao vivo, como se estivesse no teatro.
– Essa certeza de que eu estou ao mesmo tempo que eles estão é o que faz desse audiovisual teatro. Essa sensação de presença mesmo nessa solidão. Eu acho que talvez isso fique depois da pandemia, é um lugar inédito: não é audiovisual, é ininterrupto, a gente tem que buscar uma teatralidade para a câmera, não é a linguagem audiovisual realista. É muito mais próximo da performance. Muito interessante de pesquisar. Quero pesquisar mais – revela.
Denise também destaca como aspecto positivo a novidade do formato e sua democratização, já que o pré-requisito para conseguir acessar o espetáculo é ter conexão de internet, levando o projeto a lugares que ele jamais chegaria presencialmente.
– Pensar que gente que está lá no interior onde raramente tem acesso a programação de teatro pode nos assistir. Gente de cidades que a gente nunca vai com nosso teatro, gente de fora do Brasil. Foram mais de 30 mil visualizações. É bonito, um negócio para se pensar e achar esse novo lugar.
Galileu agora terá exibições nos canais do Sesc Fortaleza e Ipatinga, que a atriz brinca que é uma “turnê virtual”:
– O legal é que a gente vai mudando um pouco de uma apresentação pra outra, vai aprimorando. Fiquei até com vontade de criar uma versão monólogo do Galileu pro teatro quando pudermos voltar.
Novas criações em uma filosofia “do it yourself”
O último processo criativo como ator no teatro de Silvero Pereira foi em 2013, com BR-TRANS. Em 2017, surgiu a ideia de retornar a investigação na criação da escrita, encenação e atuação. Porém, as gravações da novela A Força do Querer, seguidas por outros projetos, fizeram-no adiar o desejo de voltar aos palcos com uma montagem inédita.
– Assim, com a pandemia e muitos dias em casa pensando sobre como manter o desejo de produzir vivo, mesmo que de forma virtual, convidei um amigo para adaptar o espetáculo Metrópole, que encenamos em 2012, para o Instagram. Tal experiência deu tão certo que me trouxe de volta o desejo de resgatar o projeto BIXA VIADO FRANGO, parado desde 2017. A diferença de Metrópole para esse novo trabalho é que BIXA VIADO FRANGO nasce já na perspectiva virtual, com os elementos da plataforma – declara o ator e diretor cearense.
BIXA VIADO FRANGO estreou em 3 de agosto e contou com três apresentações – com previsão para retorno em cartaz ainda neste ano – pelo perfil @sala_de_espetaculos, no Instagram, em formato de live, com venda de ingressos. O projeto foi construído a partir de memórias de Pereira, experiências e percepções sobre gênero, sexualidade e sociedade. A obra, um tanto autobiográfica, resgata vivências relacionadas a sexualidade e gênero e brinca com mecanismos da rede social. O ator assumiu o desafio de encarar todas as funções técnicas:
– Como estou sozinho em casa durante a pandemia, escrevi, dirigi, editei os vídeos, opero luz, som, atuo e coordeno a transmissão. O segundo desafio é fazer as pessoas comprarem essa nova ideia, fugir da mesmice das lives que têm ficado cada vez mais comuns e apresentar uma experiência diferenciada, envolvente e que traga um pouco da sensação teatral.
Segundo o artista, mesmo virtual, a relação com o público tem sido visceral e única.
– Não é uma transmissão pré-gravada, é ao vivo, o efêmero presente, com seus erros e acertos. A adesão de quem assistiu e os comentários que recebemos são muito positivos, e tal ação tem movimentado no aspecto econômico também, pois temos conseguido trabalhar, vender nossos ingressos e agregar funções como minhas produtoras de Fortaleza (Peixe Mulher), meu Coletivo As Travestidas e, inclusive a parceria com o músico gaúcho Rafael Erê – conta.
Antes de começar o espetáculo, o público tem 10 minutos para interagir através de comentários – um “burburinho divertido”. Ao final da sessão, a interação é reativada e uma sala de debate é aberta para os participantes contarem suas impressões sobre a experiência.
– Na maioria, os relatos são de terem se sentido diante de uma experiência cênica – revela Pereira.
Para o ator, que ganhou enorme reconhecimento com o personagem Lunga no filme Bacurau, a experiência teatral digital será uma nova possibilidade para os criadores e produtores.
– Não existe a ideia de substituição do teatro, isso é impossível. Nós, artistas, e público estamos loucos por esse encontro. Mas acho que, sim, essa plataforma pode ter seu espaço mais adiante, inclusive porque as próprias plataformas estão inovando recursos para melhor receber essa demanda. Entretanto, o grande desafio vai ser reabrir os teatros e adaptar essa obra para o contato físico, olho no olho. Esse é o meu grande desejo. Reconstruir uma obra que partiu dessa necessidade de isolamento e desses recursos para o teatro como ele realmente é na essência.
Confira abaixo algumas plataformas e projetos de espetáculos teatrais online, escolha sua sessão e bom espetáculo!
- #emcasacomsesc – veja aqui
- PALAVRA Z – veja aqui
- TEATRO ABERTO EM CASA – veja aqui
- GRUPO CORPO – veja aqui
- FESTIVAL UP – veja aqui
- TEATRO OI FUTURO – veja aqui
- GRUPO GALPÃO DE TEATRO – veja aqui
- TEATRO OFICINA – veja aqui
- MOSTRA ONLINE E-CENA –veja aqui
- CINE TEATRO BRASIL – veja aqui
- COMPANHIA MUNGUNZÁ – veja aqui
- Plataforma ESPETÁCULOS ONLINE – veja aqui
- Plataforma BILHETERIA EXPRESS – veja aqui