Criatividade e transformação: a cultura da música eletrônica para além do beat

Na última sexta-feira do mês de julho, Beyonce impactou o cenário da música pop com seu novo trabalho, o álbum “Rennaisence”. Desenvolvido durante a pandemia, o álbum conta com 16 faixas e, segundo depoimento da própria cantora, visa a energia da celebração. No embalo do ritmo de festa, Beyonce trouxe referências disco nas canções do álbum, em especial de house music, subgênero musical dentro da música eletrônica.

Rennaisence” é um dos trabalhos da cantora que mais se aproxima do universo da música eletrônica. Esse estilo musical se destaca por ter nascido do underground e hoje instigar cada vez mais jovens a se experimentarem na música não instrumental. Assim, a convite do novo álbum de Beyonce, adentramos um universo que vai muito além de  uma música de festa – a cultura da música eletrônica faz parte de uma experiência sonora e cultural que surge para quebrar barreiras.

Chicago e o início do House Music

O house foi um dos estilos musicais pioneiros no universo da música eletrônica, surgiu em Chicago, na década de 70, em um cenário underground, que fugia dos padrões musicais da época. Acredita-se que o nome house deve-se a uma casa de dança que existia na cidade chamada “The Warehouse”, que se tornou um dos locais a receber a música de pista naquela época. Grande parte das pessoas que frequentavam de “The Warehouse”  eram pessoas negras, LGBTQIA+ e latinas, público que, principalmente nos anos 70, era alvo de expressivo preconceito.

O documentário “Pump Up The Volume – A História Da House Music (2001)”, lançado pela Channel 4, conta em três partes a história do house music, evidenciando como o nascer desse gênero musical foi comandado por pessoas que fugiam dos padrões brancos e hetenormativos da época. Na história da música de pista, destacam-se duas figuras responsáveis pela popularização da house music, são eles Frankie Knuckles e Larry Levan. Knuckles (1955-2014) foi DJ e produtor musical e em 1997, Knuckles foi premiado com um Grammy, como remixer do ano. 

  • Frankie Knuckles

  • Larry Levan na Paradise Garage/ Bill Bernstein

Levan (1954-1992), também DJ e produtor musical, foi marcado por sua trajetória como residente do clube Paradise Garage, outro clube de dança que assim como The Warehouse foi importante para ascensão do house music. Tanto Knuckles quanto Levan faziam parte da comunidade LGBTQIA+ e não escondiam tal traço de suas personalidades.

Mesmo Knuckles e Levan sendo dois dos nomes mais lembrados na história da música eletrônica, antes mesmo desse tipo de sonoridade se tornar um gênero musical, quem descobriu ferramentas capazes de possibilitar sons e ritmos para construir o que se tornou a música eletrônica foram elas.

Elas como pioneiras

Isabel Nogueira, artista e professora universitária, estuda música e gênero pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e destaca o documentário“Sisters with Transistors” (2020), de Lisa Rovner, ao discorrer sobre o papel pioneiro das mulheres no início da música eletrônica. 

“Eu sempre comento, tem mulheres trabalhando em todos os ramos da música, se a gente não achou é porque a gente procurou pouco”, lembra Nogueira. 

Hoje os holofotes e line ups de música eletrônica são protagonizados por homens, mas foram elas as responsáveis pelo pontapé inicial no universo da música por meio de máquinas, sintetizadores e moduladores.

Laurie SpiegelLaurie Spiegel

“Sisters with Transistors” traça o caminho de mulheres da década de 1920 que descobriram os sons sintéticos através de prematuros computadores e aparelhos de rádio. O filme conta com gravações antigas e destaca os nomes Bebe Barron, Pauline Oliveros, Maryanne Amacher, Delia Derbyshire, Daphne Oram, Laurie Spiegel, Suzanne Ciani, Wendy Carlos, entre outros.

Laurie Spiegel foi quem produziu uma das primeiras músicas em computadores, Inclusive, durante a corrida espacial, quando foi enviado ao espaço pelo satélite Voyager um disco dourado para verificar se outras formas de vida podiam escutar, a primeira faixa do disco foi feira por Laura Spiegel, “Kepler’s Harmony of the Worlds”. 

Além do protagonismo feminino, que por vezes é esquecido na história da música eletrônica, existiu outro período marcante para história deste gênero musical que também merece destaque pelo significado que, infelizmente, carrega. Hoje a música eletrônica conta com ouvintes no mundo inteiro, mas no início da sua disseminação, ela não foi tão bem aceita.

“Disco Sucks” – protesto contra a difusão da música de pista

A noite de 12 de julho de 1979, em Chicago, ficou marcada como “Disco Demolition Night” (noite de demolição de discos), em decorrência de um protesto contra a música eletrônica de pista que aconteceu naquela data. Em um campo de baseball, na cidade de Chicago, mais de 50.000 torcedores destruíram discos de vinil enquanto gritavam dizeres como “Disco Sucks”, argumentando contra a música de pista. 

Protesto Protesto "Disco Demolition Night"/ Reprodução

Porém, tanto a revolta tinha iniciativas preconceituosas e criticava a cultura envolta da música eletrônica (e não a sonoridade da música em si) que alguns dos protestantes carregavam discos de artistas de outros gêneros musicais, mas que, assim como figuras importantes da cena house e eletrônica, eram pessoas negras. 

Esse protesto ocorreu cerca de um ano e meio após o lançamento de “Os Embalos de sábado a Noite” (Saturday´s Night Fever), filme estrelado pelo ator John Travolta e com, trilha sonora do grupo Bee Gees. O filme icônico foi um importante marco para a difusão da música de pista. 

Capa filme Capa filme "Os Embalos de Sábado a Noite"/ Acervo digital

Para além da sonoridade – a cultura da música eletrônica 

Léo Pianki com disco de Kelli Hand/ Foto por Rafael BoardmannLéo Pianki com disco de Kelli Hand/ Foto por Rafael Boardmann

Léo Pianki é artista, produtor musical e DJ e hoje faz parte do coletivo Turmalina. Turmalina classifica-se como um quilombo digital que desenvolve criativos do circuito da música eletrônica da periferia de Porto Alegre e da região metropolitana. Pianki foi um dos idealizadores do coletivo, que teve seu início em 2016 e atualmente conta com projetos como o recém finalizado Feijoada Turmalina, proposta de imersão criativa e capacitação profissional na área de produção musical de maneira gratuita. O projeto foi selecionado pelo edital Natura Musical, por meio da lei estadual de incentivo à cultura do Rio Grande do Sul (Pró-Cultura).

” (…) A gente bebe muito de outros lugares pra fazer uma coisa original (…) a gente bebeu muito lá de Chicago, do som da diáspora africana, do som europeu”.

Pianki explica que para o Turmalina se consolidar como o coletivo que é hoje, precisou se inspirar em muitas vertentes, bebendo de diversas fontes. O Turmalina surge com uma geração que busca trazer para a rua a cultura da música eletrônica, quebrando paradigmas de uma música pré-consolidada. E assim como o jazz, o rock, o samba ou o pagode, o gênero musical da música eletrônica também abraça um estilo de vestimenta, uma vertente de público e uma forma de ver o mundo; também engloba uma cultura.

  • Léo Pianki segurando disco de Kelli Hand/ Rafael Boardmann

  • Léo Pianki em entrevista para o Noite dos Museus/ Rafael Boardmann

Música para ocupar: o papel da música eletrônica na ocupação de espaços ociosos

Antes de ingressar no curso de Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Pianki conta que cursou Arquitetura e acredita que por isso percebe algumas relações entre a importância da música eletrônica com a ocupação de espaços ociosos. O produtor musical relembra a Teoria da Deriva, de Deboard (1958), que discorre sobre a relação entre as pessoas e os lugares e como o conjunto urbano se organiza a partir de uma visão psicogeográfica. Para Pianki, o movimento de ocupação da música eletrônica pode ser comparado, de certa forma, com o próprio carnaval, festa de origem cristã, mas que hoje é celebrada por todos aqueles que gostam da festividade de rua.

“(…) A gente estar num espaço, chegar lá, e colocar som para as pessoas ocuparem aquele espaço. Por exemplo, o carnaval faz isso, desde muito tempo as pessoas ocupam as ruas pra dar o seu grito, desabafar alguma coisa, ver alegria depois daquele ano inteiro de trabalho, a gente continua fazendo esse carnaval só que de outra forma”. 

Assim, unindo tanto a questão cultural quanto a estética da música, Pianki ressalta como música eletrônica é sobre transformação e sair do padrão.

 “Hoje a cultura eletrônica é afetada muito por outros campos mais políticos e sociais porque tem a ver com transformação, tem a ver com sair de algo que era modelo padrão e tradicional da música gregoriana clássica de 12 compassos pra uma coisa completamente experimental, que é a música eletrônica”, descreve Pianki.

Além de ter sido iniciada por pessoas negras, a música eletrônica de pista também carrega traços da música africana, como a batida se assemelhando ao grave do tambor. Afinal, a grande base da música eletrônica são as batidas, hoje os beats por minuto, ou bpm. Pianki explica que hoje, na música pop, as batidas mais comuns são de 120 bpm ou “quatro por quatro”. Algumas das batidas comuns em músicas, inclusive, são produto da própria bateria eletrônica utilizada para produzir músicas. Isso porque as baterias já vem de fábrica com alguns beats prontos, os presets, que podem ser utilizados como base para músicas novas. Pianki relembra que a famosa canção “Sexual Healing”, de Marvin Gaye, tem como base um preset da máquina Tr808. 

Pianki trabalha hoje com dois instrumentos principais para produção de músicas, a bateria eletrônica Tr808 e um sintetizador. 

Autonomia e liberdade sonora

Outra característica da música eletrônica em destaque a outros estilos musicais é que este gênero trabalha com a maior possibilidade de autonomia para o artista. A música eletrônica pode ser criada e produzida pelo mesmo artista que a idealizou, não é necessário uma orquestra ou uma banda, por exemplo.

“Quando tu vai produzir uma música com meios eletrônicos (…) tu tem uma coisa interessante que é uma possibilidade de autonomia, de tu produzir as coisas e tu estar nesse lugar que tu nao vai depender de uma orquestra por exemplo,  (…) tu vai criar pra tu fazer”, conta Nogueira. 

E assim, pela autonomia da música produzida por máquina é que existe a possibilidade de criar a partir de sonoridades diferentes do usual – tudo é som, e porque não pode virar música? No último álbum de Nogueira –  Bel Medula, como é seu nome artístico – a musicista conta que utilizou o som de um afiador de faca que passava em sua rua para produzir uma música. Foi a partir de uma escuta diária, atenta aos detalhes, que nasceu uma nova música. Confira “O Afiador”, de Bel Medula: 

O cenário da música eletrônica em Porto Alegre

Marcus Felix é DJ e produtor musical em Porto Alegre e junto de Pianki faz parte do Coletivo Turmalina. Felix atua como DJ há quase 10 anos, e o que primeiro começou como uma atividade ocupacional, tocando em festas de faculdade, se transformou na profissão de Felix. A música sempre foi algo presente na vida do artista, que vem de uma família de musicistas e desde os 13 anos estuda música.

Para Felix todo o processo da música eletrônica é instigante, desde a produção até ouvir o resultado. Em entrevista para o Noite dos Museus, Felix explica um pouco sobre como funciona seu processo de criação musical, principalmente a partir de samples – trechos musicais que já estão gravados. 

 

Para Felix, Porto Alegre já apresenta um cenário consolidado na música eletrônica, uma vez que tem diferentes pessoas produzindo música, o que estabelece uma rede de apoio dos artistas. Ao comparar o mercado musical de DJs de música eletrônica de Porto Alegre com o de São Paulo, Felix destaca que aqui os músicos se relacionam de forma mais unida e isso é uma característica positiva da capital gaúcha.

“Aqui a cena é um pouco diferente, porque aqui todo mundo se conhece, é uma cena bem unida”, explica. 

Porém, apesar de Porto Alegre contar com grande grupo de DJs, Felix comenta que nem todos que tocam produzem suas músicas, e o artista destaca como esse processo é importante para quem deseja atuar no ramo musical. Além disso, escutar o próprio trabalho em grandes caixas de som que embalam o público é uma das etapas mais gratificantes, conta Felix.

Felix faz parte da parcela de DJs que também produz músicas. Hoje ele trabalha em casa, utilizando caixas de som pequenas, sem muita potência. Mas o artista conta que quando escuta o resultado do seu trabalho em caixas de som grandes e enxerga centenas de pessoas animadas ao som de seu beat, é quando sente que o esforço foi recompensado.

“Ser DJ é muito isso de poder escutar o teu processo criativo na pista”, reflete Felix.

 

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