02 set 2022

Arte

Entre cores e delírios: o que era o método paranoico-crítico de Salvador Dali?

Além das Belas Artes, o pintor surrealista deixou um legado também para psicologia, com seu método de criação baseado na paranoia do inconsciente

“Será que é paranoia minha ou ali tem um rosto?” Essa é uma pergunta que qualquer pessoa que observe alguma obra de Salvador Dalí (1989 – 1904) pode fazer. Afinal, olhar por algum tempo as telas do pintor espanhol é sempre uma viagem: rostos, formas e narrativas se mostram e escondem em suas imagens. Dalí é um dos precursores do surrealismo – talvez a própria figura central do movimento – justamente pelo conteúdo que explora em seus trabalhos. E, respondendo a pergunta retórica que nos faz questionar a própria sanidade ao enxergar novas figuras em uma obra de Dalí, sim, pode até ser um sinal de alucinação notá-las, mas isso talvez signifique que você está entendendo o método de Dalí: estudado por importantes psicanalistas como Jacques Lacan (1901 – 1981), o que regia os pincéis do artista era um método chamado de pensamento paranoico-crítico. 

Entendendo o Surrealismo

Antes de adentrar o universo alucinógeno de Dalí, é preciso entender o movimento a que o artista pertencia, o surrealismo. Nascido na França, depois da Primeira Guerra Mundial, o surrealismo é um movimento de vanguarda que aparece como uma reação contra a desumanização da sociedade, em um cenário de tensão pós-guerra. Assim, o surrealismo buscava encontrar os valores permanentes do ser humano por meio do amor e da poesia, que eram as potencialidades que o movimento acreditava serem capazes de guiar até esse destino. 

Um dos pilares que regia o movimento surrealista era o fenômeno da psicologia de automatismo psíquico. Esse fenômeno representa pensamentos que não passam primariamente pelo campo da consciência; ou seja, pensamentos desconexos, aparentemente sem sentido, que por vezes são chamados de delirantes. Esse quadro natural da mente humana é fruto do trabalho do inconsciente. 

Caminhando lado a lado com o automatismo psíquico, uma das atividades que os surrealistas da época admiravam era a escrita automática. Diferentemente do que o nosso senso comum de hoje sugere, que se refere a máquinas automatizadas, a escrita automática é 100% natural e humana, consistindo apenas em escrever tudo o que vem à mente, sem filtro racional. Era recomendado que essa atividade fosse realizada em um estado chamado de semi-sono, quando se está prestes a dormir e a consciência vai deixando aos poucos o indivíduo descansar. 

Reunindo tais ideais de uma realidade sem interferências e “polimentos” do que seria racional é que o escritor André Breton (1896 – 1966), um dos líderes do movimento, definiu-o no primeiro manifesto surrealista como “Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de qualquer controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética e moral”.

O precursor do surrealismo: Salvador Dalí

 

Não se pode falar de surrealismo sem citar Dalí. O artista espanhol ficou muito conhecido por suas pinturas, mas ele também produziu em outros campos de expressão: esculturas, peças de teatro, roteiros para filmes, textos críticos, poemas e romances e até moda e publicidade entraram na trajetória do criador. 

Uma de suas obras mais conhecidas, que já foi tema de questão no Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM), é “A Persistência da Memória” (1931). Acredita-se que os relógios tortuosos do quadro representem a noção distorcida do tempo, enquanto a formiga e os insetos representam putrefação. Com frequência as obras de Dalí contam com imagens de insetos, ovos e retratos do próprio artista, como a figura indefinida que aparece dormindo no chão nesta tela acima.

Pensamento paranoico-crítico

Além das belas ilustrações que Dalí produzia, o que mais marcou seu trabalho foi o método de criação proposto pelo próprio artista, que dialoga diretamente com as ideias psicanalíticas de Freud e Lacan, o método paranoico-crítico. Criado no início da década de 1930, esse método consiste em tornar a subjetividade o principal aspecto da obra, deixando a racionalidade de lado. Segundo Dalí, nossa mente é capaz de produzir “objetos fantasmas”, que são imagens produzidas pelo inconsciente e que, à primeira vista, não têm significado algum. Assim, o método paranoico seria baseado em interpretar mensagens de ligações aparentemente desconexas. Dalí afirmava que, assim como um paranoico enxerga similaridades em qualquer coisa que esteja a sua frente, ele via em suas obras uma infinidade de imagens a partir de outras imagens por causa da sua sensibilidade paranóica. 

“Subúrbios de uma Cidade Paranoica Crítica” (1936), Salvador Dalí“Subúrbios de uma Cidade Paranoica Crítica” (1936), Salvador Dalí

“A Metamorfose de Narciso” (1937)

Uma das obras de Dalí que pode ser observado em prática o método do artista é “A Metamorfose de Narciso” (1937). No mito grego de Narciso, o belo jovem teria ficado tão encantado com a própria imagem refletida nas águas de um lago que se afogou e foi transformado em flor como punição pelos deuses. Assim, na obra, Dalí pintou o instante da transformação de Narciso em flor e, junto da pintura, compôs um poema que explicava de que forma o espectador deveria observar o quadro. No poema, o artista também cita Gala, sua companheira e musa inspiradora, figura quase inseparável da própria personalidade de Dalí.

“Cuando esa cabeza se raje, 
cuando esa cabeza se agriete,
cuando esa cabeza estalle, 
será la flor, 
el nuevo Narciso, 
Gala, 
mi Narciso”

“Quando essa cabeça rachar / quando essa cabeça rachar / quando essa cabeça explodir / será a flor / o novo narciso / Gala / meu Narciso”

No lado direito da tela, Dalí pintou uma mão que segura um ovo rachado, de onde brota uma flor. Em um primeiro olhar, as duas faces da pintura não se conversam diretamente. Mas, em um segundo momento, é possível perceber que a imagem de Narciso debruçado sobre o próprio joelho tem o mesmo formato que a ilustração da mão que fica ao lado direito da imagem. O questionamento retórico “é isto mesmo que eu estou vendo” confirma o método paranoico-crítico que foi usado para a elaboração da pintura.

“O Grande Masturbador” (1929)

 

"O Grande Masturbador"(1929), Salvador Dalí

“O Grande Masturbador” (1929) é outra obra de Dalí que ficou muito conhecida pelos possíveis significados que se estampam nela, também derivados do método paranoico-crítico. Acredita-se que Dalí ilustrou mensagens que refletem a sua relação paterna e com sua amada, Gala, cujo relacionamento era desaprovado pelo pai do artista. 

Essa obra também acompanha um poema que busca direcionar a maneira que o espectador deve enxergar a obra.

A psicanálise e Dalí

Na introdução do livro “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise” (1994), de Jacques Lacan, o historiador David Macey afirma que o método paranoico-crítico de Dalí foi com certeza uma das bases de inspiração do trabalho com a psicanálise do colega. A metodologia desenvolvida por Dalí ressoa, assim, no automatismo psíquico, base do surrealismo, e na força do artista em transformar delírios em criação. Em seus materiais, Lacan discorre como, para ele, o conhecimento é sempre paranoico, uma vez que vai atrás de mensagens que não necessariamente se relacionam diretamente. Em um de seus textos, Dalí resumiu em palavras melhor do que ninguém sua forma de trabalhar: 

“Há menos loucura no meu método do que método na minha loucura, e por isso continuo a dizer que a única diferença entre um louco e eu é que não sou louco”.

Butterfly Boat Salvador DaliButterfly Boat Salvador Dali

Dali no cinema

Dalí também foi autor de obras cinematográficas que, assim como suas demais produções, exploravam o irrealismo e as fronteiras do imaginário com o real. “Spellbound” (1945), traduzido em português para “Quando Fala o Coração“, é um filme de Alfred Hitchcock com cenografia de Dalí, que deu vida aos sonhos que a trama mostra.

 

Un Chien Andalou” (1929), ou “Um Cão Andaluz“, também é um filme surrealista, escrito e dirigido em uma parceria entre o cineasta Luis Buñuel e Salvador Dalí. A narrativa explora a lógica psicanalítica dos sonhos, trazendo à tona temáticas do inconsciente e as fantasias. Essa obra é famosa pela cena que está no cartaz do curta-metragem e mostra a atriz Simone Mareuil com os olhos abertos, prestes a ter uma das córneas rasgadas por uma navalha. 

O curta-metragem “Destino” é uma colaboração de Salvador Dalí e Walt Disney. A trama surrealista é baseada em uma canção mexicana de mesmo nome. O convite para a parceria foi feito pelo próprio Walt Disney a Dalí em 1946, mas o projeto foi abandonado e só veio à luz em 2003, por meio de uma equipe de animadores franceses, resultando em um filme de seis minutos. 

 

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