05 ago 2022

Arte

#filmisnotdead: A nova era da fotografia analógica

Câmeras que antes pareciam sucata hoje voltam à ativa principalmente na mão de jovens que vêm experimentando na fotografia analógica

Apesar da facilidade de capturar momentos com o celular, nos últimos anos os millennials e a geração Z têm se interessado por um formato tradicional de registrar imagens: a fotografia analógica.  Nas redes sociais, hashtags como “filmisnotdead”, “filmisalive”, “35mm” e “ishootfilm” são bastante populares e reúnem fotografias que usuários tiraram com câmeras que utilizam filme. Na fotografia analógica, todo o processo de registrar o momento é diferente – e completamente novo para aqueles que nasceram já com câmeras digitais na mão. Desde o clique, que é feito uma só vez para cada foto, até a espera pela revelação do filme para ver a foto, trata-se de um mundo diferente. 

  • Hashtag #35mm no Instagram

  • Hashtag #filmisalive no Instagram

  • Hashtag #filmisnotdead no Instagram

O fascínio pelo analógico voltando ao universo profissional

Filipe ​​Giuriatti, mais conhecido como Fil, é fotógrafo e professor na escola Fluxo de Fotografia, em Porto Alegre. Atualmente, Fil possui um laboratório de revelação de fotografia analógica na capital gaúcha cuja grande parte da clientela é formada por jovens na faixa dos 20 anos. Mas a história de Fil com a fotografia se iniciou muito antes, em 2003, quando começou a atuar como fotógrafo de eventos. Naquela época, a forma predominante de fotografia era a analógica, já que as câmeras digitais ainda eram novidade e essa nova tecnologia custava muito caro. O fotógrafo conta que então o digital era visto como o futuro da fotografia.

Os primeiros contatos profissionais de Fil com o digital aconteceram em um estúdio de fotografia publicitária em que ele passou a trabalhar em meados de 2006. Foi quando Fil viu o digital acontecer e, ao mesmo tempo, o analógico se desmanchar. O fotógrafo conta que, para sua surpresa, até surgiu a possibilidade de trabalhar com fotografia analógica quando ganhou um laboratório de revelação – mas, para Fil, assim como para os profissionais da época, o analógico não fazia mais muito sentido. “Eu ganhei um laboratório inteiro naquela época, que pra mim também pareceu sucata. Ele ficou enfiado no sótão por anos, porque todo ele era grande, um monte de coisas e equipamentos, e ali não parecia uma possibilidade”, lembra o fotógrafo.

Mas, apesar de o digital ter dominado o ramo profissional, Fil sempre manteve latente a paixão pela fotografia analógica. Ele explica que, enquanto as câmeras digitais são sempre parecidas e entregam resultados de cor e qualidade semelhantes, as analógicas podem ser muito diferentes umas das outras. Os filmes também possibilitam experiências diversas de fotos que câmeras digitais jamais conseguirão entregar. “O digital, por mais que evolua, é tudo muito igual, e tu pegas câmeras analógicas e cada uma é completamente diferente da outra, elas têm formatos diferentes. E isso sempre me fascinou, eu sempre gostei, tem aquela coisa mais manual de se trabalhar, de pegar, e isso sempre me agradou”. 

Filipe ​​Giuriatti em seu laboratório de revelação, com câmera analógica / Rafael BoardmannFilipe ​​Giuriatti em seu laboratório de revelação, com câmera analógica / Rafael Boardmann

De sucata à profissão: o Laboratório de Fil e a fotografia analógica para a geração Z

 

A oportunidade de trazer novamente o analógico para a vida profissional de Fil surgiu quando pegou para si uma processadora para filme colorido a caminho do descarte na escola Fluxo de Fotografia. O achado coincidiu com um novo interesse pela fotografia analógica. “Estava tendo uma tendência já em 2017 e 2018 de um crescimento do analógico. Daí começaram a surgir outros laboratoristas”. E foi aí que o laboratório do Fil começou a surgir. Com o material que já dispunha, mais a processadora que ganhara, o fotógrafo começou um novo negócio. 

Hoje, a clientela do Laboratório do Fil é composta por pessoas entre 40 e 50 anos que cresceram lidando com o analógico – e por isso conservam essa tradição – e também por jovens com menos de 30 anos, que são a maioria. Mas por que esse interesse tão grande dos millennials e da geração Z pela fotografia analógica? 

Fil manuseando materiais de revelação de foto com filme no seu laboratório/ Rafael BoardmannFil manuseando materiais de revelação de foto com filme no seu laboratório/ Rafael Boardmann

“É tudo uma questão experiencial”

Para Fil, o que leva os jovens a se interessarem pela fotografia analógica é o mesmo que motiva a volta do vinil: a forma com que as atividades são feitas. “É legal tu ter um Spotify ou Deezer e poder escutar qualquer música, mas assim tu perdeu a experiência de sentar e escutar música. Então por isso que muita gente compra um vinil: pra sentar e escutar música. A questão geracional de quem não viveu a fotografia analógica nos anos 80 e 90 vem muito na contramão da geração digital acelerada que as redes sociais cada vez mais alimentam.”

Fil explica que, apesar de a nova fotografia analógica passar pelo digitalizar – já que uma das finalidades de muitos fotógrafos amadores de 35mm é postar suas fotos em perfis online -, ainda assim a experiência é outra. Requer paciência, instiga o “não saber” como a foto ficou. É uma forma diferente de viver a fotografia – afinal, é o experienciar que muda, como define o fotógrafo: “As pessoas estão cansadas de fazer 5 mil fotos e elas durarem 24 horas em um storie. Elas querem aquela foto, não as 5 mil fotos que eu fiz quando dei uma banda na orla. Eu quero aquela foto, daquele dia, aquela uma fotografia”.

O Laboratório de Fil funciona na própria casa do fotógrafo, onde ele realiza revelação e digitalização de filmes coloridos e em preto e branco. Para conhecer o trabalho dele, confira o perfil @laboratoriodofil no Instagram.

Fil com algumas de suas câmeras fotográficas analógicas/ Rafael BoardmannFil com algumas de suas câmeras fotográficas analógicas/ Rafael Boardmann

A fotografia analógica como válvula de escape do tempo

[A fotografia analógica] tem uma surpresa maior e eu acho que isso é uma das auras do encantamento que as pessoas têm pela fotografia”, diz Raul Krebs, fotógrafo e professor da Unisinos e da ESPM, em Porto Alegre. O profissional também acredita que um dos principais motivos de as novas gerações se interessarem pela fotografia analógica é a espera e a experiência de fotografar, completamente diferentes de clicar com o próprio celular. 

Assim como Fil, Krebs manteve a paixão pelo analógico, mesmo que de forma artística ou ocupacional. Em 2012, o fotógrafo realizou uma exposição intitulada “TRAUM”, palavra que significa “sonho” em alemão, com algumas das fotografias clicadas em analógico. “TRAUM” reuniu fotografias de diferentes séries de Raul Krebs, que, com curadoria de Bernardo de Souza, transpunham uma atmosfera de narrativas não lineares por vezes encontradas em sonhos. Na época, a mostra foi exposta na Galeria Lunara da Usina do Gasômetro.

  • Fotografia de Raul Krebs, da série Foreplay, parte da mostra “TRAUM”/ Acervo digital

  • Fotografia de Raul Krebs, da série Mask, parte da mostra “TRAUM”/ Acervo digital

Na contramão da acelerada geração Z, Krebs, assim como Fil, também acredita que o que motiva os jovens a procurarem pela fotografia digital é o “como” e não tanto o “que”. A forma de fazer fotografia é completamente diferente nos formatos analógico e digital. E ainda que os resultados também sejam diferentes, o foco não é esse. Como Krebs aponta, a fotografia analógica serve quase como uma válvula de escape do imediatismo que hoje se vive: “Tempo é um luxo, hoje a gente sabe disso. Talvez tenha isso da fotografia como uma válvula de escape do tempo que a gente está vivendo, ou da falta de tempo que a gente está vivendo. Se a gente continuar no digital, a gente continua acelerando esse tempo”.

Fotografar é recordar – com o analógico, mais ainda

Letícia Müller tem 23 anos e trabalha em Porto Alegre como designer e fotógrafa. Ela faz parte do público novo das câmeras analógicas. O analógico surgiu para Letícia de forma meio despretensiosa, por meio da compra de uma máquina em um brechó. Assim, o que começou como um hobby conquistou depois de um tempo espaço na vida da fotógrafa, transformando-se em uma nova paixão.

O tempo de espera pelo resultado, processo comum na fotografia analógica, é um dos fatores que mais encanta Letícia. “Esse espaço de tempo entre tirar as fotos e mandar revelar te faz esquecer as fotos que tu tirou, e a sensação de lembrar dos momentos é definitivamente algo que mexe comigo”, confessa ela. 

Foto de Letícia Müller com câmera analógica filme 35mmFoto de Letícia Müller com câmera analógica filme 35mm

Apesar de ter vontade de explorar ainda mais o universo da fotografia analógica, Letícia destaca que os valores encarecem a experiência, o que dificulta a compra de outras câmeras ou filmes diversos. Afinal, acompanhando a maior procura pela fotografia analógica, o preço de muitos produtos relacionados também aumentou.

O filme analógico também no cinema

O cinema também vem aderindo à onda do formato analógico. Alguns cineastas nunca abandonaram o filme em película, utilizando-o como traço característico de suas obras – como Quentin Tarantino. Mas outras produções atuais apreciadas pelas gerações mais novas também vêm utilizando o formato analógico – como a série “Euphoria”, da HBO, que rodou toda a segunda temporada em filme 35mm. Para as filmagens foi utilizado o Kodak Ektachrome – mesmo filme que registrou as primeiras fotos do ser humano na Lua. 

Frame da segunda temporada de “Euphoria”, série da HBOFrame da segunda temporada de “Euphoria”, série da HBO

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