26 ago 2022

Literatura

Quem decide o que é folclore?

Histórias folclóricas são marcadas por reviver características sociais, culturais e de poder de diferentes povos através de lendas místicas e curiosas

Na última segunda-feira, 22 de agosto, foi o Dia do Folclore Brasileiro, data criada para valorizar a cultura nacional de origem popular. Esse dia foi escolhido em homenagem à primeira vez que o folclorista britânico William John Thoms (1803 – 1885) utilizou o termo “folklore”, no ano de 1846. “Folklore” deriva-se de “folk” que, na língua inglesa, significa povo, e “lore”, tradição. Com sonoridade quase idêntica, traduziu-se a palavra para o português como folclore. 

A valorização desse tipo de manifestação se deve ao fato de que o folclore carrega traços sociais e culturais dos locais que provém. O folclore é uma maneira de conhecer o comportamento de determinado povo, entender seus valores e características daquele espaço. Mas há um questionamento básico que gera grande discussão entre os pesquisadores desse próprio campo de estudos: o que é folclore? 

Quem define o que é folclore

“O que é o folclore? A gente tem que estabelecer o que está chamando de folclore, o que historicamente foi chamado de folclore, quem chamou essas coisas de folclore e para que, com quais funções”, afirma Jocelito Zalla, doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e também pesquisador e extensionista do Laboratório de Ensino de História e Educação (LHISTE/UFRGS). Um dos focos da pesquisa de Zalla é a história cultural e folclorista, em especial a gaúcha. Ao refletir sobre o que é folclore, o estudioso levanta questionamentos que antecedem ainda a definição da palavra: quem decidiu que aquelas histórias seriam consideradas folclore? 

Folclore caracteriza-se por ser uma forma de cultura produzida por grupos populares e transmitida de forma oral. Porém, quem são os responsáveis por registrar tais manifestações nem sempre faziam parte dos grupos populares. Zalla atenta que, principalmente nos séculos XVIII e XIX, com o avanço de sociedades urbanas, surge uma perspectiva colecionista e a necessidade de formação de identidade dos grupos sociais. Assim, a procura por histórias que confirmem a identidade do local foi intensificada majoritariamente por pessoas da elite. O folclore popular foi registrado por pessoas que não viviam no ciclo social que o folclore popular rodava, o que leva a crer, segundo as indagações de pesquisadores como Zalla, que existiu uma interferência desses “curadores” externos, que selecionaram o que seria ou não registrado como memória nacional. 

O que conhecemos hoje como folclore

O folclore como conhecemos hoje é definido, segundo o dicionário brasileiro da língua portuguesa Michaelis On-line, como “costumes tradicionais, crenças, superstições, cantos, festas, indumentárias, lendas, artes etc., conservados no seio de um povo; cultura popular, populário”. Em concordância com a definição do Michaelis, para o pesquisador e folclorista paraense Vicente Salles (1931 – 2013), referência nos estudos sobre a cultura popular especialmente no Pará, o folclore pode ser considerado um produto da cultura de determinado local. Salles acreditava que a sociedade como um todo participa na criação e manutenção das práticas folclóricas, caracterizando-se como uma forma de entender a maneira que aquela sociedade se organiza de forma política, econômica e também social. 

Zalla ainda acrescenta uma características que para ele é importante na significação do folclore: as histórias tratam de um passado não necessariamente mais vivo, mas domesticado, que não entra em contato com os conflitos das elites.

Folclore é nacional ou regional?

Há quem acredite que não existe folclore nacional, porque, como o folclore trata de lendas e histórias passadas de forma oral entre as pessoas, ele será sempre delimitado por regiões próximas umas das outras, e não de forma a abranger um país inteiro. Assim, uma história que aconteceu no Rio Grande do Sul, por exemplo, não poderia chegar a Roraima. Porém, poderia ser repercutida no Uruguai, que é mais próximo. Esse intercâmbio de informações aconteceu com a história do Saci Pererê. 

No folclore brasileiro, o Saci Pererê é um menino negro, com uma perna só, que usa um gorro da cor vermelha. Uma de suas características é estar sempre com um cachimbo na boca. Segundo a história, o Saci tem apenas uma perna porque perdeu a outra em uma luta de capoeira. Essa lenda surgiu na região sul do Brasil, acredita-se que disseminada pelos índios guaranis. O mesmo personagem existe na Argentina, Uruguai e Paraguai, mas com características diferentes. Nesses países, ele se chama “yacy-yateré” e é um menino loiro de pele branca e que usa um chapéu de palha. No folclore argentino, ele inclusive possui as duas pernas. 

Essas diferenças podem ser entendidas pelos traços culturais de cada país. A negritude e a capoeira são características do povo brasileiro, além do fumo, representado pelo cachimbo, que é presente em diferentes povos indígenas. Já em países como Argentina, Uruguai e Paraguai, essas marcas culturais não se repetem da mesma maneira.

  • Saci Pererê

  • yacy-yateré

Zalla acredita que o folclore é um movimento que tende a ser mais regional do que nacional se o considerarmos como um conjunto de expressões culturais de determinado povo. “[as histórias do folclore] Não são necessariamente nacionais, elas acompanham a circulação de pessoas. Em espaços como os nossos, que são como fronteiras, a gente vai ver que, apesar das línguas diferentes, há uma mescla muito grande desses elementos culturais quando eles fazem sentido na forma como os grupos sociais se organizam dos dois lados da fronteira”, descreve.

Porém, Zalla levanta a hipótese de que, se considerarmos folclore como a união de histórias selecionadas por um grupo de elite, a fim de reforçar a identidade de um determinado espaço, então o folclore seria sim um movimento nacional. A reflexão do historiador volta à questão inicial sobre o que é folclore a partir de quem elenca as histórias escolhidas e quem define o que é o folclorismo brasileiro.

Histórias da carochinha

O folclore brasileiro é amplamente difundido pelas escolas e famílias em território nacional, mas não há grandes evidências da globalização do nosso folclore. No entanto, algumas histórias do folclore europeu foram difundidas mundo afora, principalmente pelos registros cinematográficos elaborados a partir de tais narrativas. As “histórias de carochinha” e os contos de fadas, por exemplo, são exemplos disso. E tudo começou com pesquisadores folcloristas pioneiros como Charles Perrault (1628 – 1703). 

Em 1697, o escritor e poeta francês foi o responsável por redigir o que seriam as primeiras histórias de folclore infantil registradas, as chamadas histórias da carochinha. “A Bela Adormecida no Bosque”, “Chapeuzinho Vermelho”, “O Barba-azul”, “A Gata Borralheira” e “As Botas de Sete Léguas” são alguns dos contos que Perrault eternizou. Ao longo de sua produção, o autor reuniu histórias populares e anônimas de sua região e transformou-as em narrativas com seres místicos, como fadas e monstros. Perrault era de uma família importante: seu pai e irmãos pertenciam à corte do rei Luís XIV – mas isso não impediu que o escritor desenvolvesse uma característica importante de crítica à nobreza e às classes altas da sociedade, uma vez que em suas histórias, com frequência, os personagens mais desfavorecidos socialmente eram quem “ganhava a batalha” contra uma força opressora maior. 

Os irmãos Grimm

  • Ilustração Irmãos Grimm

Jacob Grimm (1785 – 1863) e Wilhelm Grimm (1786 – 1859) nasceram em Hanau, na Alemanha, e também foram precursores do folclore moderno. Hoje, muitas de suas histórias são conhecidas pelos filmes infantis da Disney como contos para crianças com “felizes para sempre”. Porém, em 1812, quando a primeira coletânea de contos foi publicada pelos irmãos Grimm, as narrativas eram bem diferentes. 

Assim como Perrault, os Grimm resolveram reunir o maior número possível das histórias que ouviam em encontros de família e transpô-las para o papel, colaborando para a construção do folclore da sua região. Naquela época, o hábito de contar histórias era muito comum em reuniões familiares, já que não existia a diversidade de passatempos que existe hoje. Assim, dois anos após a publicação do primeiro livro de contos, os irmãos Grimm decidiram percorrer a Alemanha atrás de mais histórias, resultando em uma nova coletânea – desta vez com mais de 200 contos. 

5 livros pra quem gosta de folclore

Para quem tem vontade de aprender mais sobre o folclore do nosso país, Luís da Câmara Cascudo (1898 – 1986) é um dos nomes de referência em estudos étnicos e culturais do folclore brasileiro. Cascudo nasceu e viveu sua vida no estado do Rio Grande do Norte. O autor faleceu aos 87 anos, e em sua memória foi criado o Instituto Câmara Cascudo, que preserva as diversas obras do autor.

Confira cinco livros que separamos do mestre Câmara Cascudo sobre folclore, publicados pela Global Editora:

Dicionário do Folclore Brasileiro

Obra sem similar na língua portuguesa, o “Dicionário do Folclore Brasileiro” tem milhares de verbetes sobre as superstições, crendices, mitos, danças, lendas, práticas mágicas adotadas e vividas pelo povo brasileiro em seu cotidiano. 

Tradição, Ciência do Povo

O livro reúne registros escritos e orais da cultura popular brasileira. Entre outros temas, analisa a relação do nosso povo com a natureza (as plantas e seus aspectos medicinais e mágicos), seus fenômenos naturais (chuva, calor, vento, tempestade etc.) e os quatro elementos (água, fogo, terra e ar).

História de Vaqueiros e Cantadores para Jovens

Coletânea acessível ao jovem leitor, representa uma viagem pelo Brasil diverso, rico e prazeroso de Câmara Cascudo. Antes de todos os versos há sempre uma explicação que contextualiza o motivo e a história da cantoria.

“A lenda de Pedro Cem é muito espalhada e conhecida no Brasil. A história, contada como apólogo moral, ouvi muitas vezes, nas noites sertanejas. Meu pai sabia algumas quadras. A que transcrevo é de junho de 1932, impressa em Recife, Pernambuco. Pedro Cem continua tendo leitores e sua existência servindo de exemplo apavorador”, escreveu Cascudo.

Lendas Brasileiras para Jovens

Dezesseis lendas compõem essa antologia, agrupadas por regiões, do Norte ao Sul do país. Um resgate da herança cultural, construída por índios, negros e europeus. Conhecer a história do Cobra Norato, do Barba Ruiva, do Romãozinho, da cidade encantada de Jericoacoara, do Chico Rei, da gralha azul e do Negrinho do Pastoreio, entre outros, dá uma dimensão de nossa diversidade linguística e, consequentemente, cultural. 

A Princesa de Bambuluá

Uma história resgatada por Luís da Câmara Cascudo da literatura oral do Rio Grande do Norte. Escrita pelo autor especialmente para o público infantil, “A Princesa de Bambuluá” é ilustrada pelos traços de Cláudia Scatamacchia.

Veja também