10 mar 2022

Literatura

Eduardo Galeano 80 anos: os afetos, os humores e o gosto por aglomerações do escritor uruguaio

Poucos escritores conseguiram desvendar a América Latina com a profundidade e a poesia de Eduardo Galeano (1940 – 2015), autor uruguaio que marcou a literatura das décadas de 1970 e 1980 e faria 80 anos neste dia 3 de setembro. Seu livro mais marcante, As Veias Abertas da América Latina (1971), traça um panorama geral – não só político, mas principalmente – de como os países do continente lidaram com suas colonizações, subjugos econômicos e golpes de poder.

Mas Galeano foi além da análise sociopolítica: especialista na cultura dos povos originários de países como Brasil, Uruguai e México, tratou em obras como Memória do Fogo (trilogia lançada entre 1982 e 1986) da realidade comezinha dessas populações, trazendo à história desses povos expressões como o futebol, os cafés e as conversas de esquina.

– É um autor e um amigo que faz muito falta. Galeano sempre teve um ar de oráculo, pois fazia uma leitura muito particular não só do seu tempo, mas de coisas que ele não presenciou – pontua o cineasta Felipe Nepomuceno, diretor do documentário Eduardo Galeano Vagamundo (2018), que tem exibição nesta quinta-feira no Canal Brasil, do curta-metragem Cinco Anos de Solidão (2020), que pode ser assistido no fim da matéria, e amigo do escritor uruguaio.

Em um momento em que o isolamento social é uma necessidade e as atividades culturais enfrentam desafios inéditos, a leitura – principalmente de Eduardo Galeano – pode servir como um refúgio. Ou, talvez, como inspiração para superar as dificuldades da pandemia.

Galeano enfrentava os desafios com bom humor e empolgação

“Detesto os choramingões, odeio os que vivem se queixando, admiro os que sabem aguentar, calados, os golpes dos tempos ruins”, escreveu o uruguaio em O Caçador de Histórias (2016), seu último livro, lançado após sua morte. No texto, Galeano dá pistas de como superar desafios com energia e, principalmente, com companhias: “Por sorte nunca falta algum amigo que me diz que continue escrevendo, que os anos ajudam e que a calvície ocorre por pensar demais e é uma doença profissional. Escrever cansa, mas consola”.

– Galeano tinha um humanismo extremado. Era um homem a favor dos homens, das pessoas, dos desvalidos. Era uma figura fascinante, de uma lealdade que impressionava. E, talvez por isso, escrevia de maneira muito bonita – explica Ivan Pinheiro Machado, editor da L&PM, que publicou a obra completa do autor no Brasil.

Se podia ser duro em seus textos críticos, que buscavam no jornalismo e na história as ferramentas para analisar, era também emotivo em seu convívio. A reclusão não lhe caía bem.

– Ele tinha um grande senso de humor, até corrosivo, e era uma pessoa agradabilíssima. Gostava de sentar na mesa de um bar e conversar com as pessoas – conta o professor de literatura Sergius Gonzaga, que recebeu Galeano no Brasil nas primeiras incursões do uruguaio no país e desenvolveu uma amizade duradoura com o autor. Gonzaga brinca: – Era um militante político, tornou-se pop por isso. Mas, aonde ele ia, perguntavam-lhe de política, o que às vezes lhe dava fastio, porque só queria jogar conversa fora.

O Caçador de Histórias, de Eduardo GaleanoO Caçador de Histórias, de Eduardo Galeano

Na internet, tornou-se vítima de fake news

A necessidade – mais do que o dom – de escrever foi a mola propulsora de uma produção intensa e numerosa: seus mais de 40 livros reuniram textos curtos, narrativas longas, ficção, reportagem e relatos históricos. Isso não impediu Galeano de tratar com o característico bom humor a popularidade de suas obras – remetendo a um aspecto cada vez mais cotidiano da sociedade, as notícias falsas: “Desde muito pequeno, tive uma grande facilidade para cometer erros. De tanto errar, terminei demonstrando que ia deixar uma profunda marca da minha passagem pelo mundo. Com a sã intenção de aprofundá-la, tornei-me escritor, ou tentei sê-lo. Meus trabalhos de maior sucesso são três artigos que circulam com meu nome na Internet. Na rua as pessoas me param, para me parabenizar, e cada vez que isso acontece começo a desfolhar a margarida: – Me mato, não me mato, me mato… Nenhum desses artigos foi escrito por mim”, escreve em um trecho de O Caçador de Histórias.

No futebol, era fã de aglomerações

Se hoje o convívio social é algo a ser deixado de lado, em tempos normais as expressões culturais de um povo são necessariamente ligadas a aglomeração. Apaixonado por futebol, Galeano tinha especial apreço pelo aspecto social do esporte – via muito mais graça no jogo cercado de torcedores do que na fruição pela tela da TV.

“É raro o torcedor que diz: ‘Meu time joga hoje’. Sempre diz: ‘Nós jogamos hoje’. Este jogador número doze sabe muito bem que é ele quem sopra os ventos de fervor que empurram a bola quando ela dorme, do mesmo jeito que os outros onze jogadores sabem que jogar sem torcida é como dançar sem música”, escreve em O Futebol ao Sol e à Sombra (1995), livro no qual trata sobre as particularidades do esporte que é paixão entre os latino-americanos.
“Embora o torcedor possa contemplar o milagre, mais comodamente, na tela de sua televisão, prefere cumprir a peregrinação até o lugar onde possa ver em carne e osso seus anjos lutando em duelo contra os demônios da rodada.”

Os abraços e a pandemia

– A obra de Galeano é muito ampla, aborda diversos assuntos sob vários pontos de vista. Vivemos uma realidade inédita, de muitas mudanças, mas a história é cíclica: ler Galeano hoje é uma experiência extremamente atual – afirma Nepomuceno, que conviveu com o autor por mais de 40 anos, em uma relação que remonta ao pai Eric Nepomuceno, tradutor de Galeano para o português.

Seu Livro dos Abraços (1989) tornou-se best-seller da L&PM durante a pandemia. As Veias Abertas da América Latina também teve as vendas multiplicadas na quarentena. A explicação pode ter a ver com a percepção do autor sobre temas tão presentes, como a necessidade de um abraço: “O sistema, que não dá de comer, tampouco dá de amar: condena muitos à fome de pão e muitos mais à fome de abraços”.

Ou ainda a pertinência de sua descrição do início da peste negra na Europa: “No Século XIV, os fanáticos guardiães da fé católica declararam guerra contra os gatos nas cidades europeias. (…) Então os ratos, liberados de seus piores inimigos, se fizeram donos das cidades. E a peste negra, transmitida pelos ratos, matou 30 milhões de europeus”.

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