08 out 2020

Arte

Sem a rua, artistas urbanos buscam alternativas durante a pandemia

Philipe Philippsen, acostumado a tocar acordeon em parques, precisou migrar para lives, shows gravados e podcasts durante a quarentena

Por Gustavo Foster

André Carreira, dramaturgo responsável por alguns dos espetáculos de teatro de rua mais celebrados da América Latina, voltou-se às tecnologias digitais para criar: foram aulas dadas, roteiros produzidos e até um concurso criado, para premiar a dramaturgia feita no confinamento. Para Eduardo Kobra, um dos mais renomados artistas visuais urbanos do mundo, com muros e paredes pintados em megalópoles como São Paulo, Londres, Nova York e Moscou, o isolamento causou problemas, como a dificuldade de criação e crises de ansiedade, mas fez nascer uma onda de solidariedade que ajudou outros artistas urbanos que passam por dificuldades – e deve se transformar em um instituto com esse fim. No caso de Philipe Philippsen, músico que ilustra a matéria e faz suas apresentações no principal parque de Porto Alegre, a Redenção, os últimos meses foram de shows gravados em isolamento, lives para empresas e aulas sobre música. Para os três, uma realidade em comum: a pandemia os tirou da rua e os forçou a repensar sua arte.

Ainda que possam contar – mesmo que tardiamente – com ações como a Lei Aldir Blanc, que garante uma renda emergencial para profissionais do setor cultural, artistas urbanos veem a pandemia e seu consequente isolamento social atingirem não só os seus bolsos, mas o seu principal palco: a rua. É consenso entre eles que a situação prejudicou – e muito – sua criatividade, como explica Carreira, dramaturgo do grupo (E)xperiência Subterrânea, que investiga espaços urbanos como palco e tornou-se referência no chamado “teatro de rua”, com espetáculos como Guardachuva e O Homem de Cristal:

“Meu trabalho no espaço urbano está muito relacionado às pessoas que habitam a cidade. Considero as cidades e seus habitantes elementos-chave da ‘cidade como dramaturgia’. Na minha lógica de trabalho no espaço público, o teatro é, ao mesmo tempo, leitura e escritura da cidade. Isolados em nossas casas, essas vivências são impossíveis, e nenhum tipo de rede de comunicações substitui a convivência direta e tensa que o espaço urbano impõe. O teatro na cidade neste momento simplesmente não existe”, reflete o dramaturgo.

 

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Escola Raul Brasil em Suzano #raulbrasil #escolaraulbrasil

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Kobra também sente falta dessa conexão com os transeuntes, tanto que sofreu um bloqueio de criatividade. Trancado em casa, só voltou a pintar seus célebres painéis recentemente, em São Paulo: “Pintar nas ruas possibilita essa conexão, essa interação, essa integração não só com a cidade, mas com as pessoas, os transeuntes, e isso é interessante, porque você acaba tendo um diálogo com pessoas de várias classes sociais. Pessoas que conhecem galerias do mundo inteiro, pessoas que nunca entraram em uma. Esse contato é essencial para mim e para qualquer artista que pinte pelas cidades. Faz uma falta tremenda ter essa reposta da cidade, porque meu trabalho é feito nas cidades e para as cidades. Só recentemente voltei para as ruas, com todo o cuidado, para pintar a escola de Suzano em que houve aquele massacre”, explica.

Isolamento social para repensar a arte e a vida

Essa ausência se refletiu não só na produção artística desses profissionais, mas na maneira como eles veem sua atividade. Kobra conta que passou a ver importância não só nas mensagens de consciência social que passava através de suas pinturas, mas em ações sociais que transformassem essas mensagens em prática. “Tem sido um momento de muita reflexão”, diz ele, que explica:

“Já utilizo os murais para falar sobre questões de racismo, tolerância, união dos povos, porém, durante a pandemia, me despertou o fato de fazer arte com propósito. Entendi que a arte, além dessa interação com a cidade, pode também beneficiar pessoas que estão necessitadas. Procuro fazer isso através das mensagens, mas agora entendi que é possível utilizar a arte para destinar recursos para ONGs, moradores de rua, pessoas que estão necessitadas, ou para o instituto que eu estou desenvolvendo agora. Criei alguns trabalhos, como a obra Coexistência, que ajudou a arrecadar cerca de R$ 800 mil que foram destinados para a compra de marmitas, kits de higiene, máscaras para moradores de rua de São Paulo e outras regiões do Brasil. A pandemia fez com que eu repensasse muitos métodos de trabalho, mas sobretudo exercitar a solidariedade, entender a dificuldade de vários artistas, que vivem no dia a dia da arte vendida nas praias, na frente dos pontos turísticos. Muitos com que conversei não têm dinheiro para comprar mantimentos, então está sendo um momento muito pesado em vários aspectos”, diz.

Outros, como Philipe Philippsen e André Carreira, viram na necessidade de adaptação um novo caminho para estimular sua criatividade. O músico acostumado aos parques se transformou até em youtuber:

“Meu trabalho como ator, músico, professor, contador de histórias… Tudo parou. São raras as oportunidades de trabalho que têm aparecido nesse quadro. Fui contratado por uma empresa para fazer show em uma festa por Zoom e foi uma experiência muito legal, bem diferente de tudo que eu já fiz. Também fiz parte de um projeto em que gravei um pocket show. E, como muita gente, também descobri uma nova profissão na quarentena: estou produzindo uma série de vídeos sobre música para o público que estuda dança e teatro, chamada Falando em Música…, então virei roteirista, apresentador e editor de vídeo. Um youtuber completo”, brinca.

Já para o dramaturgo André Carreira, a experiência tem remetido a um projeto do passado:

“Em 2014, montei um espetáculo com uma atriz na Alemanha, um ator na Argentina e outra atriz no Brasil utilizando o Skype. O público assistia ao vivo, em espaços nos três países, e via nas telas o mesmo que via cada personagem em cada país. Essa experiência me ensinou muito porque, apesar de ter ido até Bremen e Buenos Aires ensaiar, a maior parte do tempo fizemos ensaios pelo Skype, e o elenco nunca tinha se visto pessoalmente”, conta, para explicar outras mudanças em seu processo criativo:

“Minha produção artística e intelectual mudou muito, porque tenho escrito mais. Desenvolvi um concurso de dramaturgia chamado Cenas do Confinamento, que está se transformado em um projeto de leituras dramáticas e pequenas montagens virtuais. Não posso dizer que a ausência da rua me prejudicou”, diz.

A rua retornará

Mesmo que a situação não seja favorável aos otimistas, todos os artistas ouvidos têm uma opinião parecida: a cultura e a arte resistirão. André Carreira resume bem o espírito: “Assim que houver a possibilidade de retomada do espaço público, as forças criativas vão ocupá-lo e reinventar suas formas de expressão. O teatro é uma arte resiliente que volta, aprende e se reinventa sempre”.

E esse aspecto de resistência da arte encontrará nas ruas um público sedento por contato, por troca e por experiências de que foi privado por muito tempo. Philippsen vê nisso um resgate do que sempre pautou o seu trabalho:

“Não acho que a minha arte vá mudar depois da pandemia, necessariamente. Mas acho que já não vou ser o único a ir pra rua com sede de presença, de convívio, de olho no olho, de aqui e agora, de respirar junto. Se antes o público queria tudo isso e talvez não sabia, agora eu acho que todo mundo está sabendo que é isso que todos nós queremos. Porque isso faz muita falta. Mais do que nunca”, resume.

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