10 mar 2022

Literatura

Por que a obra de George Orwell ficou ainda mais popular durante a pandemia?

Nascido há mais de um século e conhecido por obras lançadas há mais de sete décadas, o escritor inglês George Orwell (1903-1950) chega a 2020 mais popular do que nunca. No Brasil, suas duas obras mais conhecidas estão sendo relançadas pela Companhia das Letras, além de uma coleção de ensaios e uma versão em quadrinhos de 1984. Para o ano que vem, quando o autor entra em domínio público, pelo menos mais quatro reedições de Orwell devem ser lançadas no país. Enquanto isso, 1984 e A Revolução dos Bichos, suas duas obras mais célebres, figuram nas duas primeiras posições na lista de mais vendidos no Brasil da Revista Veja. Ou seja, George Orwell, 70 anos depois de morrer, parece ser o escritor mais popular do Brasil.

Com tradução de Paulo Henriques Britto e organização do professor de literatura comparada da USP, Marcelo Pen, a Companhia das Letras lançou Animal Farm com uma característica até então inédita no Brasil: o título do livro foi traduzido como A Fazenda dos Animais, uma interpretação mais fiel do que o tradicional A Revolução dos Bichos – a obra foi lançada no Brasil em 1964, financiada pelo Instituto de Pesquisa Social (IPES), grupo de propaganda anticomunista, com tradução feita por um tenente do Exército.

“Pensamos em dar mais uma opção para o leitor. Manter em catálogo nossa edição consagrada de ‘A Revolução dos Bichos’, e contar essa história da história, de como o Animal Farm foi usado como arma ideológica no Brasil e no mundo. No posfácio, escrito para a nova edição, o professor e crítico Marcelo Pen narra com detalhes esse episódio — muito orwelliano, diga-se. Crítico dos totalitarismos, Orwell se desiludiu com o regime soviético, mas seguiu sendo socialista — acreditava, na verdade, que o mito soviético atrapalhava o socialismo ocidental. Mas viu seu livro se tornar propaganda contra todo socialismo”, disse Emilio Fraia, editor da Companhia das Letras, em entrevista ao UOL.

Além do relançamento da fábula que reflete sobre as movimentações sociopolíticas sob a ótica dos animais de uma fazenda, a editora está lançando uma seleção de ensaios, Sobre a Verdade, traduzida por Claudio Alves Marcondes; edições da Penguin Companhia de A Fazenda dos Animais e 1984; e a adaptação inédita do quadrinista paulistano Fido Nesti para 1984. Há ainda, no Brasil, as seguintes previsões de lançamentos:

      • A editora Antofágica prepara para janeiro de 2021 novas edições de 1984, com tradução de Antônio Xerxenesky, ilustrações de Rafael Coutinho e capa de Giovanna Cianelli e Pedro Inoue, e A Revolução dos Bichos, com tradução de Rogerio Galindo, ilustrações de Talita Hoffmann e capa de Giovanna Cianelli;
      • A editora Aleph anunciou para fevereiro de 2021 as edições de 1984 e A Revolução dos Bichos;
      • A editora Biblioteca Azul já anuncia pré-venda das novas edições de 1984 e A Revolução dos Bichos, com traduções de Bruno Gambarotto e Petê Rissatti, respectivamente;
      • A editora Martin Claret prepara uma edição com capa dura de A Fazenda dos Bichos, com tradução de Leonardo Castilhone, também com o novo título, e de 1984, com tradução de Lenita Esteves.

A ilustradora Talita Hoffmann, responsável pelas imagens nas páginas de A Revolução dos Bichos da editora Antofágica, diz que, ao trabalhar na reedição, percebeu semelhanças entre a história e situações gerais de governo, mas também de relações sociais:

“São muitas características que remetem a um projeto de governo corrupto (ou que vai se corrompendo com o tempo), é até meio difícil fugir de clichês. O livro tem muitas frases que ficaram famosas pra falar sobre corrupção ou desigualdade (“Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros”, etc), mas Orwell não é didático, nem moralista, por isso o livro é tão bom. Acho que dá para pensar tanto em projetos de governo, quanto em pequenas hierarquias e poderes dentro de empresas, ou em dinâmicas de grupo, por exemplo. Sempre que existe uma promessa de horizontalidade e as hierarquias vão aparecendo aos poucos, dá pra traçar paralelos com A Revolução dos Bichos“, diz.

O fato de figurar na lista de mais vendidos no Brasil ao lado de outras obras distópicas, como Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury, e Duna (1965), de Frank Herbert, dão a pista de que a realidade fora do comum que se impôs durante a pandemia de coronavírus pode ter inspirado os leitores. O jornalista Carlos André Moreira, do canal Admirável Mundo Livro, avalia que a contaminação em massa só expôs com mais clareza e de forma mais decisiva aspectos que já vinham se tornando rotineiros na sociedade.

“A distopia 1984 e a fábula A Revolução dos Bichos/A Fazenda dos Animais têm se mostrado cada vez mais atuais porque abrangem questões que sistematicamente têm ocupado as preocupações do mundo contemporâneo. A ascensão de governos autoritários ou com flertes perigosos com o autoritarismo sinaliza para a falta de liberdade que Orwell retratou em tom de pesadelo. Com a pandemia, muitas dessas práticas que já vinham pautando o debate em termos políticos se tornaram questões reais de vida e morte, o que parece amplificar seu alcance. Ao mesmo tempo, a pandemia espalhou pelo mundo o sentimento que pauta de modo decisivo os dois livros: o medo. O próprio conceito da matemática obedecendo às idiossincrasias do poder com o “2+2=5” citado em 1984 é um insight muito agudo de um regime com pendores autoritários transformando a ciência em instrumento de controle e a disseminação de fatos cientificamente falsos como norma”, explica o jornalista.

Confira a entrevista completa com o jornalista Carlos André Moreira sobre o recrudescimento de popularidade de George Orwell em 2020:

Que elementos de 1984 e Revolução dos Bichos podem ser relacionados com o momento atual do mundo? Governos autoritários, táticas de desinformação e discussões sobre controle de informações pessoais parecem ser os mais óbvios, mas tu achas que a pandemia pode ter trazido novos aspectos que ajudem a explicar esse reforço de popularidade?

A distopia 1984 e a fábula A Revolução dos Bichos/A Fazenda dos Animais têm se mostrado cada vez mais atuais porque abrangem questões que sistematicamente têm ocupado as preocupações do mundo contemporâneo. Como você sinalizou, a ascensão de governos autoritários ou com flertes perigosos com o autoritarismo sinaliza para a falta de liberdade que Orwell retratou em tom de pesadelo. O controle da mídia e a disseminação de informações também são um elemento muito à vista. Com a pandemia, muitas dessas práticas que já vinham pautando o debate em termos políticos se tornaram questões reais de vida e morte, o que parece amplificar seu alcance. Ao mesmo tempo, a pandemia espalhou pelo mundo o sentimento que pauta de modo decisivo os dois livros: o medo. Tanto o regime do IngSoc/Socing na Oceânia quanto o regime dos porcos se impõem por represálias violentas que pretendem incutir o medo. Winston Smith tem sua determinação finalmente derrotada na “sala do medo”. O medo como a verdadeira dinâmica das relações sociais é a tônica de regimes totalitários e de sociedades vivendo epidemias particularmente contagiosas, principalmente quando a esse contágio se juntam as práticas que já havíamos comentado: autoritarismo, mentira como política de propaganda, controle do indivíduo. O próprio conceito da matemática obedecendo às idiossincrasias do poder com o “2+2=5” citado no livro é um insight muito agudo de um regime com pendores autoritários transformando a ciência em instrumento de controle e a disseminação de fatos cientificamente falsos como norma, o que se tem visto bastante com a contrainformação selvagem montada por Bolsonaro e seus apoiadores aos mais simples postulados das ciência durante esta pandemia.

O relançamento de Animal Farm saiu com o título de A Fazenda dos Animais. É uma alternativa à versão que chegou ao Brasil traduzida por um militar em 1964 e uma alternativa, no fim das contas, à narrativa anticomunista que se criou em torno da obra. De que forma tu achas que isso precisa ser levado em conta quando se analisa essa obra?

O viés político da obra é claro, e seu uso como propaganda política é um fato: o livro talvez não seja anticomunista de todo, mas é anti-stalinista de fato. Ao mesmo tempo, foi absorvido como parte importante da propaganda anticomunista da CIA durante a Guerra Fria, algo com o que o próprio Orwell teria grandes chances de não concordar, apesar a apropriação recente de sua figura como ídolo de alguns templários de apartamento da direita. Alguns poderiam dizer que a dimensão política apenas empobrece a análise da obra, mas acho que estão equivocados. Orwell sempre foi profundamente político. E apesar de sua obra extensa, escreveu esses dois livros que tiveram um impacto político tão grande que hoje em dia pensá-los numa redoma fora da política é impossível. Assim, a mudança por motivações políticas da Companhia é uma possibilidade interessante. Eu, pessoalmente, também desconfio um pouco que haja intenções tanto de marketing quanto de política, uma vez que a mesma editora vai continuar fazendo circular a obra com o título antigo e já publicou um livro de citações de Orwell este mesmo ano em que a obra ainda era citada como “Revolução dos Bichos”, sabendo já que mudaria o título em uma edição lançada poucos meses depois. Penso que tem aí também um componente de publicidade, diferenciar essa edição em particular, e conseguir repercussão midiática, no exato ano em que o autor cai em domínio público e outras editoras também vão tentar faturar com ele. Assim de memória, me lembro de seis edições que estão saindo até 2021: as duas da Companhia, uma da Martin Claret, uma da Antofágica, uma da Biblioteca Azul e uma da Aleph. Isso também deve amenizar a discussão sobre a tradução tradicional, com tantas novas versões com as quais compará-la nos próximos anos.

Quando se fala de Orwell, se fala muito dessas questões políticas, de governo e controle social. Que outros aspectos menos conhecidos da obra de George Orwell são relevantes, na tua opinião?

Orwell em língua inglesa não chegou a ser um experimentalista exuberante, e talvez seja essa uma chaves de leitura para a continuidade de sua fama nos tempos atuais. Sua prosa busca uma certa elegância dentro de uma norma tradicional – em 1984, até pelo tema do pesadelo burocrático, percebe-se que ele escreve por vezes tentando emular o tom sóbrio e incolor de muitos documentos oficiais em algumas passagens. Sua prosa, portanto, é de rápida apreensão. A forma como ele consegue casar alegoria e imaginação com uma mensagem política também é um de seus trunfos. E a mensagem, apesar de direta, não é por demais fechada, e sim aberta a interpretações. Tanto que, escrito por um anarquista que foi também social-democrata, internacionalista e trabalhista, seu trabalho hoje vem sendo reclamado como modelo por conservadores (às vezes com um exagero e uma impropriedade cômicos). A alegoria é ampla o bastante para caber a todos os regimes arbitrários. Sua ironia feroz é outro elemento a ser levado em consideração, mesmo em seus romances mais famosos, muitos deles desconstruções iradas de um quadro social britânico que hoje não existe mais.

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